29 de março de 2015

Que família o Brasil quer?


Enquanto o Judiciário amplia o direito dos gays, o Legislativo retoma o estatuto que prega o casal constituído apenas por homem e mulher. No centro do debate, estão os anseios da sociedade

Fabíola Perez (fabiola.perez@istoe.com.br)
Dez anos depois de uma longa batalha judicial, o Supremo Tribunal Federal (STF) publicou neste mês uma decisão inédita, que reconheceu o direito de um casal homossexual de adotar crianças. O educador Toni Reis, seu marido, o tradutor David Harrad, e os três filhos, Alysson de 14 anos, Jéssica, de 9 anos, e Felipe, com 8 anos, foram finalmente considerados uma família. O posicionamento favorável da corte endossou o julgamento histórico de 2011, no qual o então presidente do STF, Carlos Ayres Britto, ressaltou que a Constituição Federal não distingue a família heteroafetiva da família homoafetiva. A decisão, considerada emblemática, abrirá precedentes para outros casais homossexuais que desejem adotar.
“Se a Justiça começou a admitir é porque se trata se um comportamento já consolidado na sociedade”, diz a jurista Maria Berenice Dias, do Instituto Nacional de Direito da Família (Ibdfam). Na contramão do caminho que vem percorrendo o Judiciário, que está na vanguarda do Direito de Família, o Poder Legislativo criou recentemente uma comissão especial para discutir o projeto de lei conhecido como Estatuto da Família, que define a entidade familiar como “um núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher.” Mas, afinal, o que pensa a sociedade brasileira sobre a configuração familiar do século XXI?
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IDENTIDADE
Toni Reis (à esq.), os filhos Alysson e Jéssica, o marido David Harrad,
e o caçula Felipe: "Ganhei meu marido e meus filhos, agora me sinto um
cidadão pleno, que acredita nas instituições. Temos o poder
máximo do Judiciário como nosso guardião"

A reação dos brasileiros em relação aos diferentes tipos de família também pode ser medida após a exibição de uma cena amorosa, protagonizada pelas atrizes Fernanda Montenegro e Nathália Timberg, ambas com 85 anos, na novela “Babilônia”, da Rede Globo. A reações com o beijo gay ultrapassaram as redes sociais e fizeram a Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional divulgar uma nota de repúdio. “A telenovela tem a clara intenção de afrontar os cristãos em suas convicções e princípios, querendo trazer para quase toda a sociedade brasileira o modismo denominado por eles de ‘outra forma de amar’”. A nota diz, ainda, que a cena ataca diretamente a ‘família natural’. “Trata-se de uma visão repleta de preconceito”, diz a psicóloga Célia Mazza de Souza. “Sempre que estamos próximos de mudanças, enfrentamos resistências e, nesse caso, a reação se potencializou por se tratar de duas idosas, o que gerou duplo preconceito.” Para Célia, a sociedade ocidental viveu durante muito tempo sob a influência do patriarcado, quando apenas o pai era o provedor e o chefe da família. “Os arranjos que se vêem hoje não são decorrentes de uma crise na instituição familiar, são um reflexo de mudanças na sociedade.”
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IBOPE
Nathália Timberg e Fernanda Montenegro no beijo
da discórdia: reação preconceituosa e conservadora

A história de Toni Reis e David Harrad é um exemplo dessas mudanças. Ela começou em 2005, quando o casal entrou com pedido de adoção junto à Vara da Infância e Juventude de Curitiba. O juiz se manifestou favorável à decisão, mas impôs restrições. As crianças adotadas deveriam ser meninas e terem mais de dez anos de idade. Tempos depois, a ministra Carmen Lúcia negou o recurso extraordinário do Ministério Público. “Delimitar o sexo e a idade da criança a ser adotada por um casal homoafetivo é transformar a sublime relação de filiação em ato de caridade provido de obrigações sociais e totalmente desprovido de amor e comprometimento”, afirmou a relatora do caso. “A decisão mostrou que o conceito de inclusão foi reconhecido pela Justiça, ainda que o Congresso tente engessar pessoas dentro de um modelo único”, afirma Maria Berenice, do Ibdfam. “O direito à paternidade mudou minha concepção sobre tudo”, diz Reis. “Essa decisão vai ser uma referência para outras instâncias, não podemos ter leis apenas para um tipo de família.”

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