O Ministério da Saúde revogou, por meio da Portaria 596, de 22 de março, o Programa de Desinstitucionalização para reinserção social de pessoas com problemas de saúde mental e decorrentes do uso de álcool e outras drogas que estão internadas em hospitais psiquiátricos há mais de um ano. A portaria revogou também o mecanismo de financiamento do programa.
Uma semana depois, o Ministério da Cidadania lançou um edital (3/2022) para financiamento de projetos de hospitais psiquiátricos, aqueles que o Programa de Desinstitucionalização pretendia restringir ao mínimo necessário. Os incentivos somam R$ 10 milhões.
A sequência de medidas provocou forte reação das organizações da sociedade civil ligadas a políticas em saúde e à luta antimanicomial.
Responsável pela implementação da reforma psiquiátrica no país, a lei 10.216, de 2001, reorientou a política nacional de saúde mental e reiterou tanto que pessoas com transtornos psiquiátricos têm direitos quanto que sua reinserção social precisa acontecer no território, e não em isolamento.
Ao mesmo tempo, psiquiatras simpáticos às medidas apontam que o programa de desinstitucionalização era caro e que sua tarefa já vinha sendo efetuada pelos Caps (Centros de Atenção Psicossocial) e pelos próprios hospitais psiquiátricos. Alguns, questionam a contratação de serviços hospitalares via organizações sociais e fora da pasta da Saúde.
O caso foi parar na Comissão de Direitos Humanos do Senado, com audiência pública marcada para esta segunda (18). “O corte seguido de recursos para a estruturação da rede de atenção psicossocial e a mudança de linha no Ministério da Saúde são um caminho de volta ao passado”, disse o presidente da comissão, senador Humberto Costa (PT-PE).
O Programa de Desinstitucionalização foi criado em 2017 como parte da Raps (Rede de Apoio Psicossocial), do SUS (Sistema Único de Saúde), para promover a autonomia e o exercício da cidadania de pessoas com transtornos mentais por meio de sua progressiva inclusão social.
O Ministério da Saúde diz, por meio de nota, que o programa foi extinto por “falta de adesão” dos municípios. À reportagem, a pasta não apresentou, porém, dados sobre essa justificativa.
A Saúde afirma manter “todos os esforços para ampliar o acesso aos serviços de saúde mental no SUS aos pacientes que saem de internações psiquiátricas de longa permanência”, com destaque para o Serviço Residencial Terapêutico (SRT).
Dados obtidos pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps) via Lei de Acesso à Informação apontam que hoje 6.000 pessoas vivem nessas residências terapêuticas, para os quais são encaminhados aqueles que saíram de hospitais psiquiátricos por meio do programa extinto. O Ministério não publica dados sobre saúde mental no país desde 2015.
Já o Ministério da Cidadania, também por nota, diz que o chamamento público tem o objetivo de selecionar “organização da sociedade civil que preste atendimento como hospital psiquiátrico” e que “tenha por objeto a execução de projetos de cuidado, tratamento e/ou reinserção social, em ambiente hospitalar”.
A nota defende ainda que a Cidadania tem “competência pelas ações de cuidado às pessoas com dependência química, incluindo aquelas que apresentam comorbidades com transtornos mentais”, competência esta questionada por organizações do campo da saúde.
O texto afirma também que a oferta de tratamento para aqueles que “necessitam de cuidado em regime protegido é tema central da Política Nacional sobre Drogas”. Entidades do campo da política de drogas há tempos denunciam o investimento do governo federal em comunidades terapêuticas, entidades religiosas que oferecem laborterapia e espiritualidade.
Em manifestação conjunta, a Plataforma Brasileira de Política de Drogas, a Associação Brasileira de Saúde Mental e a Iniciativa Negra por Uma Nova Política de Drogas apontaram que o financiamento para serviços de saúde fora do SUS “constituem perigos para as instâncias de fiscalização, discussão e deliberação” o que pode colocar em risco “direitos humanos e o bem-estar das pessoas a serem atendidas”.
“Na prática, desinvestir no Programa de Desinstitucionalização e investir em hospitais psiquiátricos é trocar o tratamento em liberdade para o tratamento em confinamento”, diz Rebeca Freitas, Coordenadora de advocacy e relações governamentais do Ieps.
“Estamos juntando as peças porque o edital [da Cidadania] tem como objetivo fazer a reinserção social. Mas como falar em reinserção social se o que se retoma é a lógica do tratamento em isolamento?”, avalia Dayana Rosa, pesquisadora de políticas públicas pelo Ieps. “Confinar inviabiliza a reinserção social.”
“É consenso da literatura científica que o tratamento de base comunitária é muito eficaz e internações de longa permanência não só não possuem efeitos positivos como violam direitos humanos”, aponta a psiquiatra Nicola Worcman, diretora de assuntos científicos da ONG Desinstitute.
“A portaria revoga um processo respaldado pela lei 10.216, pela OMS e pelo direito internacional dos direitos humanos”, argumenta ela. “Estão passando a boiada, como diria o ex-ministro Ricardo Salles, no campo da saúde mental.”
Não é a primeira vez que o governo de Jair Bolsonaro (PL) toma medidas contra programas de desinstitucionalização. A gestão também defende as comunidades terapêuticas, para as quais o repasse de verbas dobrou de 2019 para 2020,
Em dezembro de 2020, o governo federal tentou revogar diversas portarias no campo da saúde mental para acabar com o programa De Volta para Casa, de reintegração social de pessoas com transtornos mentais, e diminuir as atribuições dos Caps (Centros de Atenção Psicossocial). Essas estruturas são a base da política de saúde mental brasileira.
As mudanças que o governo de Jair Bolsonaro (PL) promove agora, via edital e portaria, ocorreram sem debate público, nem mesmo com o Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde).
O Conass, por meio de nota, afirmou que o edital da Cidadania é “um equívoco, pois desrespeita a legislação brasileira ao tentar criar serviços de saúde fora do Sistema Único de Saúde (SUS) e representa uma violação a Política Nacional de Saúde Mental”.
“O Conass entende que o referido edital deve ser imediatamente cancelado e que a discussão sobre saúde mental retorne para as instâncias de gestão estabelecidas no SUS.”
“É a volta da indústria da loucura”, diz o sociólogo Paulo Delgado, autor da lei da reforma psiquiátrica de 2001.
Para ele, ainda que internações sejam necessárias em alguns casos, a portaria e o edital atraem “empresários psiquiátricos”. “Ao colocar mais recursos no sistema fechado do que no aberto, o governo está oferecendo um caminho de hospitalização num país que optou pela via oposta. É uma submissão do Ministério da Saúde à indústria de medicamentos e à indústria da loucura.”
O psiquiatra Gilberto Alves, professor da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), avalia que o modelo da atual política de saúde mental é “bem organizado e estruturado”, com estruturas de atendimento residencial e consultórios de rua, mas “precisa ser aperfeiçoado segundo dados epidemiológicos”. Além disso, aponta, “o modelo não funciona em estados mais pobres porque é caro e complexo”.
Sobre o edital da Cidadania, o especialista, que é coordenador de residência do maior hospital psiquiátrico da capital maranhense, avalia que o atendimento via organização social “é preocupante porque são entidades com muita influência política e onde os profissionais de saúde têm pouquíssima autonomia”, em geral porque trabalham em regime terceirizado.
Para Alves, o movimento antimanicomial, ao atacar os serviços médicos e hospitalares de saúde mental como “engessou possibilidades de modernização da assistência”.
Uma semana depois, o Ministério da Cidadania lançou um edital (3/2022) para financiamento de projetos de hospitais psiquiátricos, aqueles que o Programa de Desinstitucionalização pretendia restringir ao mínimo necessário. Os incentivos somam R$ 10 milhões.
A sequência de medidas provocou forte reação das organizações da sociedade civil ligadas a políticas em saúde e à luta antimanicomial.
Responsável pela implementação da reforma psiquiátrica no país, a lei 10.216, de 2001, reorientou a política nacional de saúde mental e reiterou tanto que pessoas com transtornos psiquiátricos têm direitos quanto que sua reinserção social precisa acontecer no território, e não em isolamento.
Ao mesmo tempo, psiquiatras simpáticos às medidas apontam que o programa de desinstitucionalização era caro e que sua tarefa já vinha sendo efetuada pelos Caps (Centros de Atenção Psicossocial) e pelos próprios hospitais psiquiátricos. Alguns, questionam a contratação de serviços hospitalares via organizações sociais e fora da pasta da Saúde.
O caso foi parar na Comissão de Direitos Humanos do Senado, com audiência pública marcada para esta segunda (18). “O corte seguido de recursos para a estruturação da rede de atenção psicossocial e a mudança de linha no Ministério da Saúde são um caminho de volta ao passado”, disse o presidente da comissão, senador Humberto Costa (PT-PE).
O Programa de Desinstitucionalização foi criado em 2017 como parte da Raps (Rede de Apoio Psicossocial), do SUS (Sistema Único de Saúde), para promover a autonomia e o exercício da cidadania de pessoas com transtornos mentais por meio de sua progressiva inclusão social.
O Ministério da Saúde diz, por meio de nota, que o programa foi extinto por “falta de adesão” dos municípios. À reportagem, a pasta não apresentou, porém, dados sobre essa justificativa.
A Saúde afirma manter “todos os esforços para ampliar o acesso aos serviços de saúde mental no SUS aos pacientes que saem de internações psiquiátricas de longa permanência”, com destaque para o Serviço Residencial Terapêutico (SRT).
Dados obtidos pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps) via Lei de Acesso à Informação apontam que hoje 6.000 pessoas vivem nessas residências terapêuticas, para os quais são encaminhados aqueles que saíram de hospitais psiquiátricos por meio do programa extinto. O Ministério não publica dados sobre saúde mental no país desde 2015.
Já o Ministério da Cidadania, também por nota, diz que o chamamento público tem o objetivo de selecionar “organização da sociedade civil que preste atendimento como hospital psiquiátrico” e que “tenha por objeto a execução de projetos de cuidado, tratamento e/ou reinserção social, em ambiente hospitalar”.
A nota defende ainda que a Cidadania tem “competência pelas ações de cuidado às pessoas com dependência química, incluindo aquelas que apresentam comorbidades com transtornos mentais”, competência esta questionada por organizações do campo da saúde.
O texto afirma também que a oferta de tratamento para aqueles que “necessitam de cuidado em regime protegido é tema central da Política Nacional sobre Drogas”. Entidades do campo da política de drogas há tempos denunciam o investimento do governo federal em comunidades terapêuticas, entidades religiosas que oferecem laborterapia e espiritualidade.
Em manifestação conjunta, a Plataforma Brasileira de Política de Drogas, a Associação Brasileira de Saúde Mental e a Iniciativa Negra por Uma Nova Política de Drogas apontaram que o financiamento para serviços de saúde fora do SUS “constituem perigos para as instâncias de fiscalização, discussão e deliberação” o que pode colocar em risco “direitos humanos e o bem-estar das pessoas a serem atendidas”.
“Na prática, desinvestir no Programa de Desinstitucionalização e investir em hospitais psiquiátricos é trocar o tratamento em liberdade para o tratamento em confinamento”, diz Rebeca Freitas, Coordenadora de advocacy e relações governamentais do Ieps.
“Estamos juntando as peças porque o edital [da Cidadania] tem como objetivo fazer a reinserção social. Mas como falar em reinserção social se o que se retoma é a lógica do tratamento em isolamento?”, avalia Dayana Rosa, pesquisadora de políticas públicas pelo Ieps. “Confinar inviabiliza a reinserção social.”
“É consenso da literatura científica que o tratamento de base comunitária é muito eficaz e internações de longa permanência não só não possuem efeitos positivos como violam direitos humanos”, aponta a psiquiatra Nicola Worcman, diretora de assuntos científicos da ONG Desinstitute.
“A portaria revoga um processo respaldado pela lei 10.216, pela OMS e pelo direito internacional dos direitos humanos”, argumenta ela. “Estão passando a boiada, como diria o ex-ministro Ricardo Salles, no campo da saúde mental.”
Não é a primeira vez que o governo de Jair Bolsonaro (PL) toma medidas contra programas de desinstitucionalização. A gestão também defende as comunidades terapêuticas, para as quais o repasse de verbas dobrou de 2019 para 2020,
Em dezembro de 2020, o governo federal tentou revogar diversas portarias no campo da saúde mental para acabar com o programa De Volta para Casa, de reintegração social de pessoas com transtornos mentais, e diminuir as atribuições dos Caps (Centros de Atenção Psicossocial). Essas estruturas são a base da política de saúde mental brasileira.
As mudanças que o governo de Jair Bolsonaro (PL) promove agora, via edital e portaria, ocorreram sem debate público, nem mesmo com o Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde).
O Conass, por meio de nota, afirmou que o edital da Cidadania é “um equívoco, pois desrespeita a legislação brasileira ao tentar criar serviços de saúde fora do Sistema Único de Saúde (SUS) e representa uma violação a Política Nacional de Saúde Mental”.
“O Conass entende que o referido edital deve ser imediatamente cancelado e que a discussão sobre saúde mental retorne para as instâncias de gestão estabelecidas no SUS.”
“É a volta da indústria da loucura”, diz o sociólogo Paulo Delgado, autor da lei da reforma psiquiátrica de 2001.
Para ele, ainda que internações sejam necessárias em alguns casos, a portaria e o edital atraem “empresários psiquiátricos”. “Ao colocar mais recursos no sistema fechado do que no aberto, o governo está oferecendo um caminho de hospitalização num país que optou pela via oposta. É uma submissão do Ministério da Saúde à indústria de medicamentos e à indústria da loucura.”
O psiquiatra Gilberto Alves, professor da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), avalia que o modelo da atual política de saúde mental é “bem organizado e estruturado”, com estruturas de atendimento residencial e consultórios de rua, mas “precisa ser aperfeiçoado segundo dados epidemiológicos”. Além disso, aponta, “o modelo não funciona em estados mais pobres porque é caro e complexo”.
Sobre o edital da Cidadania, o especialista, que é coordenador de residência do maior hospital psiquiátrico da capital maranhense, avalia que o atendimento via organização social “é preocupante porque são entidades com muita influência política e onde os profissionais de saúde têm pouquíssima autonomia”, em geral porque trabalham em regime terceirizado.
Para Alves, o movimento antimanicomial, ao atacar os serviços médicos e hospitalares de saúde mental como “engessou possibilidades de modernização da assistência”.
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