Lagoa do Abaeté em 6 de fevereiro de 1990 (Foto: Lucia Correia Lima/Arquivo CORREIO) |
É verdade que, num primeiro plano, há mais panelas do que roupas, mas olhando lá no fundo, próximo ao canto superior esquerdo, é possível ver uma mulher levantando o que parece ser um lençol ou alguma outra peça de roupa recém-lavada na lagoa. Por muito tempo, o Abaeté foi o ponto de encontro - e de ofício - de dezenas destas mulheres.
É o que explica o historiador e professor Rafael Dantas. Segundo ele, a Lagoa do Abaeté perdurou com um sentido social - mais até do que turístico - para aquela comunidade por muito tempo. "É possível sim que na década de 1990 tenhamos registros como esse, de mulheres, pessoas utilizando a lagoa para limpar objetos ou mesmo para continuar lavando suas roupas. O papel das lavadeiras na região é de fundamental laço, conectividade com esse passado afro na cidade do Salvador, tanto no período escravista como no pós-abolição", afirma Rafael.
O ofício das lavadeiras é cantado e ganhou o mundo com o grupo cultural As Ganhadeiras de Itapuã. Em 2010, talvez um pouco antes, cheguei a produzir um mini-documentário, junto com as colegas de faculdade Donminique Azevedo, Karina Brasil e Carol Pires, sobre as Ganhadeiras. E elas falavam sobre o ofício:
"Eram as pessoas que viviam de ganho, umas vendiam peixe, outras... Eu, por exemplo, não vendia peixe. Meu pai, minha mãe vendiam beiju, lavavam roupa de ganho. Quer dizer, tudo um meio de ganho da vida da gente. Minhas filhas, mesmo, estudaram com eu ajudando lavando roupa de ganho", contou, na época, Dona Mariinha, uma das integrantes do grupo.
Dona Nicinha, uma das compositoras, relembrou a infância, o que ajuda a formar algumas imagens na mente da gente. "Eu lavava roupa aqui no Abaeté. Depois, meus pais compraram uma casa em Itapuã e a gente vinha sempre. Minha mãe passava mais tempo aqui do que lá em Salvador. Já tava cansada, carregava água da cacimba de lá do Piatã para beber, era uma água mais alva. Carregava água de tão longe para encher o tonel e a gente ficava cansada e falava: 'Mamãe, deixa descansar um pouquinho, a gente tá cansada'. E ela falava: 'Não, nao esmoreça! Encha logo o tonel, depois vocês descansam'".
Talvez seja curioso pensar como Dona Nicinha fala de Salvador como outra cidade diferente de Itapuã. Mas um bom 'itapuanzeiro' sabe: ainda em meados do século passado, Itapuã era mesmo distante da região mais central de Salvador. Era um ponto de veraneio, como cantam nas músicas as Ganhadeiras.
Rafael Dantas volta ao final do século XIX para contextualizar a imagem feita em 1990.
"A região do Abaeté tem toda a uma ligação com o passado afro aqui na cidade de Salvador, até porque a gente sabe que muitas das histórias, as cantigas das Ganhadeiras dialogam com esse passado de mitos, de lendas, ligados a tradições africanas ou afro-baianas e também de mitos e histórias que vêm dos povos indígenas que habitavam essa região de Itapuã", afirma.
Rafael explica que, ainda no século XIX e por boa parte do século XX, muitas mulheres ainda lavavam suas roupas na Lagoa do Abaeté - muitos anos mais tarde, uma lavanderia foi instalada no local. "A gente não pode esquecer que a questão do problema do abastecimetno de água da cidade perdurou durante todo o século XX. Em meados do século XX é que a gente vai ter uma rede de abastecimento mais enraizada nas outras regiões da cidade do Salvador", conta.
Quando este documentário foi gravado, há dez anos, As Ganhadeiras de Itapuã preparavam a gravação de um disco promocional. Cinco anos depois, em 2015, já eram reconhecidas nacionalmente ao vencerem o 26º Prêmio da Música Brasileira. Em 2020, a escola de samba Unidos do Viradouro ganhou o Estandarte de Ouro do Carnaval do Rio de Janeiro contando a história das Ganhadeiras.
Fonte: Correio da Bahia