8 de abril de 2015

A FALTA DE ÁGUA E O DIREITO DO CONSUMIDOR.



Cristiana Santos
Passados sete dias sem que uma solução efetiva tenha sido dada, o desconforto pela falta de água que atinge vários bairros de Salvador está se tornando insustentável. Milhares de pessoas estão com panelas, banheiros, espaços internos da casa sujos, com dificuldade de tomar banho e fazer sua higiene pessoal, e o pior, com sede. Dada a importância da água para a sobrevivência, estão sendo injustamente exploradas.
Vivemos uma situação parecida, em extensão, ao dano causado aos consumidores quando o prédio da OI sofreu um incêndio, em dezembro de 2010. Na época, eu era Superintendente do Procon e, junto com minha equipe, tomei a frente do processo de negociação do Termo de Ajustamento de Conduta que veio a ser celebrado pela empresa, com a participação do Ministério Público.
Com efeito, uma dos razões pelas quais o século XX viu nascer o direito do consumidor, em todo o mundo, foi a mudança sofrida na oferta de produtos e serviços. Na sociedade de massa, a produção e a contratação são em larga escala. E o dano pela falha no produto ou na prestação do serviço também. Exatamente por isso, o Código de Defesa do Consumidor, sem se descuidar da proteção do cidadão individualmente atingido, traz instrumentos de tutela dos direito difusos e coletivos. É, com fundamento nessas normas, passo a relacionar, de forma resumida, quais os direitos dos consumidores e o que pode ser feito.
1) No que diz respeito à tutela coletiva
1.1) Os órgãos públicos CORESAB (Comissão de Regulação dos Serviços Públicos de Saneamento Básico do Estado da Bahia), Procon, Codecon e Ministério Público e Defensoria Pública deveriam se reunir e mapear ações de “redução de danos” à população. Em seguida, abrir o diálogo com a EMBASA, a CCR (embora a relação de consumo não seja travada com ela) e outros parceiros. Entre outras medidas, eles podem:
b.1) solicitar à EMBASA que informe que medidas irá adotar para atenuar esse grave problema. A resposta, evidentemente, não pode ser “estamos trabalhando na religação da água”, pois isso aponta uma solução futura, e a sede e necessidade que as pessoas têm de beber água pede uma resposta imediata, a ser implementada hoje.
b.2) fazer um convite às redes de supermercado de maior porte para que elas, voluntariamente (pois não há lei que as obrigue), prestem algum tipo de atendimento, ainda que precário, nos bairros mais carentes. A própria comunidade pode indicar em que os espaços eles podem estabelecer pontos de fornecimento de água mineral. Com o aumento da oferta, espera-se que o preço caia.
1.2) Para dar mais efetividade à sua ação, Procon, Codecon e Ministério Público podem propor e negociar, com a EMBASA, um Termo de Ajustamento de Conduta que, entre outras coisas, preveja:
a) fornecimento de água potável, através de carros pipas, contratados e custeados pela EMBASA, aos bairros atingidos, especialmente os de baixa renda – Isso tem sido feito em algumas localidades, mas de forma insuficiente e desorganizada. O TAC disciplinaria o tema, determinando que a oferta seja proporcional à densidade demográfica do bairro. Além disso, é importante contar com o apoio da guarda municipal e/ou da Polícia Militar para organizar as filas.
b) fornecimento de água para consumo humano – Com efeito, é inadmissível que cidadãos que, por vezes, ganham apenas um salário mínimo, estejam sendo obrigados a pagar valores extorsivos para comprar água mineral. Os relatos de pessoas desesperadas, que estão consumindo água suja por não ter outra opção, são estarrecedores. Se a EBAL não tivesse sido extinta, poderia estar fornecendo o produto, o que ajudaria a aumentar a oferta e forçaria o comércio local a baixar o preço. Sem essa opção, é preciso que a EMBASA aponte que providências irá tomar para atenuar o problema.
c) reparação dos dados – a presente situação gera, para os consumidores lesados, direito à indenização por danos materiais e morais sofridos. Em virtude do sistema adotado CDC, a EMBASA não pode alegar, para se eximir dessa obrigação, culpa da empresa responsável pela obra. Com efeito, a responsabilidade objetiva gera obrigação de reparar os danos, independentemente da aferição de culpa. O que a prestadora de serviços pode – e seguramente seu corpo jurídico fará – é examinar se tem ação regressiva contra a empreiteira. Objetivando reduzir as milhares de ações individuais que poderão vir a ser ajuizadas, com potencial de criar um grande passivo judicial, de valores inestimáveis, seria aconselhável que, no TAC, a EMBASA aceitasse conceder, à título de indenização, um desconto nas tarifas a serem cobradas nas contas futuras. Isso reduziria o ímpeto da população de levar a questão para o judiciário e, de certa forma, atenuaria o prejuízo que tiveram por precisarem fazer despesas extras adquirindo água mineral. Embora óbvio, é conveniente esclarecer que não pode haver cobrança de nenhuma tarifa durante período em que o consumo está suspenso.
d) Imputação de multa, a ser revertida em benefício do Fundo Estadual de Proteção ao Consumidor.
1.3) Caso a EMBASA se recuse a assinar o TAC, os referidos órgãos dispõem de instrumentos administrativos e judiciais para agir. O Procon e/ou o Codecon podem lavrar autos de infração, cuja multa pode chegar a seis milhões de reais. Além disso, podem, assim como o Ministério Público, fazer uso das ações coletivas.
1.4) Com relação aos comerciantes que estão vendendo água mineral a preços extorsivos, o Procon e/ou Codecon podem exercer o poder de polícia e, através de ações de fiscalizatórias, lavrar auto de infração contra aqueles que estiverem violando o CDC, art. 39, inc. V, X, de seguinte teor:
Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (Redação dada pela Lei nº 8.884, de 11.6.1994)
V – exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;
X – elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços,
2) Direitos das pessoas, físicas ou jurídicas, atingidas.
Além das medidas que sugerimos acima, o consumidor, seja ele pessoa física ou jurídica, poderá ajuizar uma ação pedindo indenização por perdas e danos. E poderá fazer isso inclusive na hipótese da EMBASA aceitar firmar um TAC, no qual assuma a obrigação de conceder um desconto nas contas futuras, à título de indenização. Em respeito ao espaço da coluna, trataremos melhor do assunto no próximo artigo.
P.S. Em todo o Brasil, os órgãos de defesa do consumidor vinculados ao Executivo são tratados de forma paradoxal pelos chefes desse Poder (Governadores e Prefeitos). Como esse é um tema muito próximo ao cidadão, que também é eleitor, essas estruturas são disputadas por grupos políticos. Mas estes, pelos compromissos econômicos e partidários que assumem, acabam fazendo uma gestão distante dos interesses do cidadão-eleitor. Muitas vezes, tornam-se estruturas aparelhadas. Sem um forte corpo técnico, a qualidade da assistência e atendimento que prestam ao público cai, e a sua credibilidade idem. A partir daí, ele perde força e passa a ser pouco procurado pela imprensa. Tenho recebido, com alegria, informações de que Marcos Medrado, novo Superintendente, está buscando se cercar dos melhores quadros do órgão. Os servidores estão motivados. Político habilidoso e com forte sensibilidade social, oxalá ele saiba colocar o Procon/BA na posição que Arquimedes Pedreira Franco deixou: como referência de qualidade dentro do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, que congrega Procons estaduais e municipais do Brasil inteiro. Um olhar especial do Secretário de Justiça e do Governador – que tem essa dívida para com o Procon – seguramente o ajudariam nessa missão. Para ficar no básico, o último concurso foi há 18 anos e restam apenas 10 servidores de carreira.
* Cristiana Santos é advogada do escritório Cristiana Santos Advogados Associados, ex-Superintendente do Procon/BA, Mestre e Doutora em Direito pela PUC/SP, professora da UFBA e da FRB e consultora do Ministério da Justiça/UNESCO.

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