12 de maio de 2015

A nova lei da biodiversidade forja a injustiça socioambiental

Vista área da floresta amazônica em Altamira, Pará (Foto: Mario Tama/Getty Image)

ONGs e povos indígenas pedem à presidente que vete na íntegra o projeto de lei da biodiversidade

                     


                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           




 




O que poderia ser um passo decisivo do Brasil na integração dos povos, comunidades tradicionais e pequenos agricultores à economia da biodiversidade, anda agora na direção contrária.
Incluir ao processo econômico do século 21 todo o acúmulo deconhecimento tradicional de indígenas, ribeirinhos, quilombolas e populações afins seria uma questão de justiça e contribuiria para incluí-los social e economicamente, de modo consequente e duradouro, muito além das bolsas verdes.
Justiça porque a experiência acumulada ao longo das gerações pelos povos tradicionais se traduz em conhecimentos e atalhos científicos, capazes de orientar os pesquisadores no acesso mais rápido do potencial farmacológico, cosmético ou nutritivo que reside nas folhas, cascas, castanhas, raízes de centenas de milhares de espécies de plantas existentes nas florestas.
Ao poupar tempo e dinheiro nas pesquisas usando esses atalhos científicos, nada mais correto do que repartir com os detentores desses saberes os benefícios das descobertas, o lucro dos produtos.
O país é extremamente diverso e pode muito bem se diferenciar das demais nações do mundo, se souber proteger seu imenso patrimônio natural e atribuir o devido valor ao saber ancestral associado a ele – e que encontra-se  vivo na memória desses povos e comunidades.
Esta é a essência do que diz a Convenção da Diversidade Biológica da ONU (CDB), ratificada pelo Congresso Nacional em 1994, e promulgada pelo governo por meio do Decreto 2.519/1998, integrando-a à legislação ambiental brasileira.
Ali estão os princípios que regem a conservação da diversidade biológica, a utilização sustentável de seus componentes para o desenvolvimento de produtos e a repartição, com as comunidades locais, de benefícios (lucros) provenientes do uso dos recursos genéticos e dos seus saberes tradicionais.
Em uma tentativa de regular na prática o acesso ao patrimônio genético e a repartição de benefícios, o governo editou em 2001 a Medida Provisória (MP) 2186, que criou o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN). A ideia era conter os crescentes casos de biopirataria, gerir os pedidos de acesso para pesquisa científica e dar diretrizes sobre como repartir os benefícios advindos daí.
A medida, porém, foi por demais restritiva. Travou as pesquisas, burocratizou o acesso e pouco fez em benefício de quem detém saberes tradicionais. Era a lei do “não pode”. Com base na MP, o Ibama multou empresas que estavam agindo à revelia da lei, mas cometeu também excessos, constrangendo empresários que tentavam acertar o caminho em meio a um quadro legal pouco claro.
Organizados, embasados por pareceres jurídicos e articulados em um lobby consistente, os empresários, sobretudo dos setores de fármacos e cosméticos, bateram à porta da presidente Dilma com um rascunho de projeto de lei para regulamentar de vez a situação.
O governo prontamente aquiesceu aos apelos da indústria para o aproveitamento do potencial genético para a produção de fármacos, cosméticos e outros bens. Só que o fez preservando tão somente o interesse desse setor.
Ao determinar que se fizesse uma lei definitiva de acesso ao patrimônio genético, esqueceu-se do compromisso feito pelo Brasil na assinatura e ratificação da CDB: o acesso ao patrimônio genético tem de andar lado a lado com a repartição justa e equilibrada de benefícios.
Na discussão prévia no projeto de lei, a indústria sempre esteve presente, ativa e propositiva. Mas foram deixados de lado nesse processo a comunidade científica e os detentores dos saberes tradicionais, que tanto contribuem para manter de pé as florestas nativas.
Mesmo sem refletir os interesses desses dois setores diretamente ligados ao tema, o Executivo enviou ao Parlamento o esboço do projeto de lei, pedindo ainda “regime de urgência” em sua tramitação, demonstrando que tinha pressa em fazer passar a lei, encurtando o tempo de tramitação, mas também limitando a possibilidade de debates com a sociedade.  O Projeto de Lei 7.735/2014 passou pela Câmara em questão de semanas.
Nenhuma audiência pública deu a chance para a academia ou os representantes das comunidades se manifestarem. No entanto, os deputados abriram brechas para emendas da bancada do agronegócio, que tratou de defender os interesses de suas bases, impondo medidas ainda mais restritivas ao direito dos tradicionais.
Apenas quando o projeto de lei desembarcou no Senado é que começou a haver um debate mais democrático sobre a nova lei. Índios, extrativistas, camponeses foram chamados em audiência juntamente com cientistas e os advogados das empresas. Foram 23 emendas discutidas e negociadas uma a uma pelos senadores. As emendas começaram a diminuir a assimetria no texto, restaurando direitos ameaçados na versão original, restituindo legitimidade ao processo.
Mas, ao retornar à Câmara, onze das emendas dos senadores foram derrubadas. Outros pontos da lei guardavam armadilhas camufladas no texto. O processo retrocedeu.
O texto final, aprovado na Câmara dos Deputados, afronta a CDB e fere princípios constitucionais e outras regulamentações de que o Brasil também é signatário, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT); contraria normas e leis em vigor; confunde e contrapõe conceitos já estabelecidos em lei.
Colide frontalmente com o interesse público no seu significado mais amplo, considerando que o patrimônio genético é um bem comum do país para o desfrute e benefício de todos, cabendo ao Estado dar-lhe guarnição e escopo protetivo. Jamais transferir esse bem exclusivamente para tal ou qual setor da sociedade.
Dessa forma, a nova lei da biodiversidade abala o motivo inicial da lei, que é dinamizar os benefícios econômicos e a pesquisa da biodiversidade, dando segurança jurídica e prevenindo conflitos por meio de regras claras e atendendo aos diversos interesses envolvidos.
Perdemos, assim, a chance de fazer justiça diante da perspectiva de contribuição dos saberes tradicionais para o uso econômico. E o patrimônio genético do país, ativo da mais alta importância, fica vulnerável.
O Brasil poderia aproveitar essa oportunidade e entrar como líder mundial na era Pós-Industrial com uma política pública digna da magnitude da sua biodiversidade e da diversidade cultural que o caracteriza.
Caso contrário, ficará à margem e legará à periferia econômica e social um enorme contingente de brasileiros que vivem no rincão das nossas florestas e cerrados, sem reconhecimento nem direitos. Será a injustiça social gravada em lei, firmada pelo governo e chancelada pelo Congresso.
Todavia, ainda existe um último recurso. A sociedade, por meio dos representantes dos povos e comunidades tradicionais e as ONGs,pede à presidente que vete na íntegra o projeto de lei da biodiversidade e reabra as discussões a partir de bases democráticas.
Se a presidente não fizer isso, ou mesmo que vete parcialmente a lei, o estrago já estará consumado. E o julgamento caberá à história.
Jean-François Timmers, Superintendente de Políticas Públicas do WWF-Brasil. Biólogo, mestre em Ecologia, Conservação e Desenvolvimento Sustentável

Nenhum comentário:

Postar um comentário